O João arrendador e o João Arrendatário

30/05/2019 08:00

João não tinha motivos para reclamar da vida. Com mais de 40 anos, seu estilo gerava inveja em muitas pessoas. Filho único de um importante produtor de cana, ele herdou uma extensa quantidade de terra.

Contudo, com a morte do patriarca, ele não esperou o corpo esfriar no caixão para fechar o contrato de arrendamento de terra com uma usina.

Trabalhar nunca foi um verbo que João gostou de conjugar. Chegou a se casar, mas quando viu que precisaria se esforçar um pouco para manter o relacionamento e percebeu que correria o risco de ter um filho, logo se divorciou.

Dizia a todos que se virava bem sozinho e, como não tinha problemas com dinheiro, vivia curtindo a vida. Seu dia consistia em uma partida de tênis ou em algumas braçadas na piscina lá pelas nove da manhã, depois resolvia algum problema bancário (que geralmente consistia em sacar dinheiro e conferir o rendimento das aplicações), fazia algumas compras no comércio da cidade, voltava para casa (uma confortável residência que ocupava dois terrenos, sendo o segundo dedicado somente para a sua área de lazer), almoçava, tirava uma soneca, jogava videogame ou assistia suas séries prediletas e, à noite, arrumava alguma companhia para se entreter.João não era má pessoa, mas sua falta de problemas na vida o excluía das rodas dos comprometidos e ocupados, fazendo-o sempre renovar seu ciclo de amizades com pessoas mais novas, por volta dos 20 anos de idade, onde era considerado praticamente um deus.

A terra que arrendou para a usina foi repassada para um produtor como parte de um bloco, estratégia que a unidade industrial adotou visando aumentar a produtividade e, ao mesmo tempo, reduzir os investimentos na área agrícola.

Por coincidência, o agricultor também se chamava João e havia perdido o pai, que assim como o do xará, era produtor de cana. No entanto, ao invés de arrendar a propriedade, ele a vendeu assim que recebera o convite da unidade para assumir o bloco. Com o recurso, investiu em maquinário e infraestrutura, o que fez crescer o seu negócio na mesma medida em que produzia mais açúcar em cada safra.

Com idade acima dos 40, o João “xará” também perdeu o primeiro casamento, mas por excesso de trabalho. Como o seu canavial ficava a 300 quilômetros da cidade de origem, sua esposa não quis se mudar por estar consolidada profissionalmente na cidade onde moravam. Era impossível manter o amor de um casal que, junto, trabalhava mais de 24 horas por dia e a centenas de quilômetros de distância. Eles chegaram a um ponto em que os encontros eram tão raros que passaram os aniversários de cada um e o de casamento, ao longo de um ano, distantes um do outro. A vinda de um filho, por exemplo, só ocorreria por milagre.Sua rotina consistia em acordar ainda no escuro, tomar um café preto rápido e rodar a cana nos primeiros raios solares.

Lá, ele ficava até perto da hora do almoço, quando ia para a cidade comer em um restaurante a quilo. Sua refeição demorava menos de meia hora. Mal havia terminado de palitar os dentes e já estava na base administrativa da sua operação, resolvendo questões administrativas, recebendo vendedores e conversando com a equipe da oficina sobre os problemas das máquinas. Ainda no final da tarde, se dirigia para a cooperativa onde ocupava a função de diretor.

Lá sempre tinha uma agenda, seja curso, reunião ou outros. Conversava com os colegas de diretoria, tomava um café com os funcionários para trocar ideias sobre os mais variados assuntos, desde taxas de juros com o pessoal do financeiro, manejo com algum agrônomo que cruzava o seu caminho ou até mesmo com o repórter da revista sobre as conjunturas do setor.

Sempre ocupado e concentrado no ambiente de trabalho, o seu momento de diversão consistia em, vez ou outra, encostar num boteco geralmente frequentado por outros produtores forasteiros, tomar uma cerveja e fumar um cigarro paiero antes de ir para casa – que se resumia em um quarto dentro da base de operação -, e dormir.

Mesmo considerando que a cidade onde os dois Joões viviam era pequena, com cerca de 50 mil habitantes, devido ao estilo de vida de cada um, dificilmente conseguiriam ser amigos a essa altura da vida.

Mas um dos caprichos do destino é juntar pessoas totalmente diferentes e foi o que aconteceu com eles: ambos se apaixonaram pela mesma mulher.

Amália tinha 35 anos, era solteira e tinha 1,65 m de altura. Não tinha nenhum dote de miss, mas cativava a todos com seu sorriso e simpatia. Foi parar na cidade após abrir uma franquia de chocolates.

O João da vida mansa a conheceu em uma manhã, logo que saiu do tênis. Em direção ao banco, notou a nova loja da cidade e se dirigiu até o local para saciar o seu espírito consumista, enquanto o João da vida dura foi comprar chocolates para dar aos seus funcionários na Páscoa.

Não demorou muito para ambos perceberem que concorriam pelo coração da empresária. Educado e perfumado, o João arrendador conquistou a mulher e a disputa nem chegou a ser intensa, com rosas delicadas, jantares rebuscados e histórias de mil e uma viagens. Foi fácil ganhar a parada do roceiro.

Vivendo de renda e juros, ele jurava amor eterno e chegou a convencê-la em fechar o seu negócio para segui-lo em uma easylife, proposta que no começo enfrentou resistência, mas depois foi vencida.

O começo durou pouco mais de dois anos. Foram jantares com uma turminha seleta de amigos (devido ao relacionamento, ele acabou sendo aceito pelos amigos mais velhos) e altas viagens, uma loucura, um sonho que todos desejavam viver.

Enquanto isso, o João arrendatário, doente de amor, não se conformava em perder a garota para o almofadinha. Para diminuir o seu sofrimento, focou ainda mais no trabalho. O homem se tornou um trator, chegando a virar mais de 24 horas na roça em épocas de colheita de cana.

Aquilo não era salutar, e ele acabou no divã de um psicólogo antes que a loucura ocupasse de vez a sua cabeça. Coincidentemente, Amália também procurou o mesmo profissional de saúde mental para controlar uma pequena crise existencial que começava a chegar em sua mente.Nos primeiros encontros, na recepção da clínica, eram apenas cumprimentos formais, mas com o passar do tempo, como o doutor tinha sérios problemas em montar uma agenda eficiente, naturalmente começaram a conversar.

Descobriram então uma “afinidade profissional”, pois João precisava de um braço direito para reduzir o seu tempo de trabalho e Amália precisava de um trabalho para fugir da ociosidade. Não deu outra: logo após a contratação, as almas se encaixaram de uma maneira tão sólida que juntos conseguiram ampliar ainda mais os negócios, ao mesmo tempo em que construíram uma linda família.

Já o primeiro João ficou cerca de uma semana de bode, organizou uma festa com sua turma de solteiros e tocou a sua vida sem muita preocupação.

“Tudo é loucura ou sonho no começo. Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira – mas tantos sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum.”

Monteiro Lobato

Fonte: Revista Canavieiros

Escrito por: Marino Guerra

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