Nossa lei não é a de Gérson

20/02/2019 09:28

Em 1976, o ex-jogador de futebol Gérson, o canhotinha de ouro, craque da Seleção Brasileira, estrelava a campanha de uma marca de cigarros, em que dizia. “Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também”. A propaganda de televisão repercutiu e deu origem, no Brasil, à chamada Lei de Gérson, sustentada por aquelas pessoas que têm um comportamento com características individualistas, que pouco se envolvem nas lutas em grupo, mas que gostam de se aproveitar do esforço alheio para, mais tarde, gozar dos benefícios conquistados. O pensamento contido nessa lei, que ganhou ampla popularidade e reflete até hoje no comportamento da sociedade tupiniquim, é que determinada pessoa ou empresa deve obter vantagens de forma indiscriminada, sem se importar com questões éticas ou morais.

            Pois bem, esse tipo de conduta, apesar de estar arraigado na mente de grande parte dos brasileiros, não dialoga mais com as atuais demandas de diversos setores da economia e da vida social do país. Diante das dificuldades e das adversidades atravessadas, como queda do crescimento, redução de empregos e endividamento, o “querer levar vantagem em tudo” certamente irá resultar em conflitos. Se quando o bolo é grande e bem recheado, queremos garantir nosso pedaço, desfrutando dos prazeres que outros puseram à mesa, quando os recursos se tornam escassos, é preciso que haja colaboração dos participantes da festa para que ela tenha continuidade. Caso contrário, se houver bolo, ele será pequeno. Consequentemente, para dar conta de atender aos convidados de forma satisfatória, será necessário chamar menos gente. Ou, então, haverá briga para conseguir uma fatia. Em outras situações, há o risco de que a luz se apague, os portões se fechem e nem haja mais festa.   

No setor

Quando olhamos especificamente para o setor sucroenergético, podemos fazer uma analogia com o papel das associações, que, tradicionalmente, são as promotoras da festa. Durante muitas décadas, elas garantiram o bolo. Mas que ninguém pense que foi fácil. Propiciar uma mesa farta aos produtores de cana foi um processo árduo, marcado pela defesa dos interesses políticos e econômicos da classe. Foi preciso negociar muito com autoridades governamentais e com representantes das unidades industriais para assegurar programas de estímulo às energias limpas e renováveis e preços que compensassem o investimento e a manutenção na atividade. Participação em fóruns de discussão, conselhos, câmaras técnicas, manifestações, eventos políticos deram às associações notoriedade para falar em nome dos fornecedores.  

Mantendo a comparação, como todos sabem, para fazer uma festa democrática, há custos. E eles não são baixos. Ninguém ousaria questionar que as associações sempre tiveram um papel preponderante, fundamental para melhorar a situação dos produtores ao longo do tempo e do próprio país, cuja balança comercial é escorada pela agricultura.

Os canavieiros mais antigos irão se lembrar do sistema de cotas, que restringia o acesso de sua matéria-prima às unidades industriais, do não cumprimento de valores e prazos para pagamento por parte das usinas, o que, durante muito tempo, levou incertezas ao campo, da falta de valorização do chamado combustível verde, o etanol, pelas esferas governamentais.

Com o envolvimento das associações, foi possível alterar os sistemas de entrega e de pagamento, fazer prosperar novas tecnologias que resultaram no incentivo à produção alcooleira e dos automóveis flex, além de programas de melhoramento genético para o desenvolvimento de variedades mais produtivas e resistentes, técnicas de plantio e colheita e para o controle de pragas.

O curioso é que todas essas questões foram almejadas e conquistadas mesmo sem o apoio da totalidade dos fornecedores. Muitos deles preferiram ficar à sombra, escondidos, só na espreita, aguardando, pela lógica da Lei de Gérson, os benefícios conquistados pela força de outros. Bancadas por alguns, as associações nunca fizeram distinção, e trabalharam em prol de todos, visando o bem-estar de uma coletividade. Agora, com o setor em situação difícil, descapitalizado, com empecilhos para continuar promovendo a festa, precisam de reconhecimentos e retribuições. Que a coletividade, tão beneficiada com a disposição das associações em lutar por mudanças, possa se juntar, dar as mãos, para que haja uma continuidade desse protagonismo, da oferta de mesas democráticas.

O reforço de entidades representativas da sociedade sempre foi primordial no desenvolvimento da economia brasileira e, hoje, nunca se fez tão importante para o setor sucroenergético, ainda mais em um tempo em que a concorrência e a competitividade estão cada vez mais acirradas. Cada grupo econômico busca, incessantemente, melhorias nos resultados, em uma busca incansável por lucros, o que pode tornar os círculos de relacionamentos entre fornecedores de cana e usinas cada vez mais difíceis. Neste contexto, as entidades de classe aparecem como elo em defesa dos interesses de seus associados, o que recai sobre a perspectiva da construção de uma relação mais justa sempre. 

Deste modo, nota-se que as mudanças ocasionadas no setor sucroenergético pela inserção e/ou aumento da participação de grandes multinacionais exigem o envolvimento efetivo das associações para traçar estratégias que minimizem os impactos gerados neste novo cenário. Como já feito em outras ocasiões, as associações de classe e as cooperativas de fornecedores de cana podem ser fortalecidas através de ações “políticas” e/ou profissionalizantes, de modo que os produtores possam manter e modernizar suas representações.

Nosso papel

A Canaoeste busca, sempre de uma forma nobre, viver a cidadania e afirmar valores, além congregar pessoas com interesses comuns, unindo forças, para, com maior eficiência, reivindicar demandas. De longe, o cenário perfeito seria a interação e a ajuda mútua, ou seja, uma conjuntura perfeita que permita a cooperação, a participação e a responsabilidade na luta por ideais da classe. Infelizmente, o cenário não é bem esse. Atualmente, dentro da nossa área de abrangência, uma das maiores do Brasil, a Canaoeste conta com aproximadamente 2500 associados e congrega cerca de 11 milhões de toneladas de cana ano/safra. No entanto, a região completa possui quase 40 milhões de toneladas de cana de fornecedores independentes. Concluiu-se, a partir disso, que apenas 25% de toda a região integram a associação, que, além de prestar-lhes serviços nas mais diversas áreas, mantém um trabalho de representatividade política e econômica massivamente ativo.

Outro protagonista é o CONSECANA-SP, organização mantida pelas entidades que representam as classes das indústrias, a UNICA, colegiada pelas usinas, e a dos fornecedores, a Orplana, colegiada pelas associações de fornecedores – digam-se os fornecedores que delas são associados.

O CONSECANA-SP tem um papel fundamental, que propicia uma relação mais justa entre fornecedores de cana e unidades produtoras. Porém, para que essa relação mantenha equilíbrio, é necessária sua constante atualização e adequação ao mercado, revisões que contemplem a nova realidade econômica, jurídica e ambiental, haja vista os novos produtos em desenvolvimento, como a expansão da energia de biomassa, o etanol de segunda geração, entre outros renováveis. Estudos que viabilizem a formação de um novo conceito custam e, atualmente, quem banca são as associações que fazem parte da Orplana e as unidades industriais associadas à UNICA. Ora, se o valor de ATR passasse de R$ 0,50 para R$ 0,80, por exemplo, seria aplicado apenas para os fornecedores de cana associados ou todos seriam beneficiados?

A Canaoeste vem fazendo sua parte no que é possível, disponibilizando serviços e benefícios de seu portfólio apenas aos associados regulares. O CONSECANA-SP, a partir desta safra, também iniciou esse processo. Informações de mercado, indicadores disponibilizados pelo sistema, só serão disponibilizados aos seus mantenedores, ou seja, os que fazem parte de associações ligadas à Orplana ou usinas associadas à UNICA.  

É curioso perceber que, em função dessa nova realidade, recebo ligações de fornecedores de cana que não fazem parte de qualquer associação, e logo não têm acesso aos parâmetros do CONSECANA-SP, que querem obter as informações antes fornecidas abertamente. Ao divulgar a nova realidade, de que estas são disponibilizadas apenas para associados e, para que o acesso seja possível, é preciso procurar a associação que responde pela região em que moram, me respondem:

– Não vou me associar, porque só uso o preço do ATR. É só isso que preciso.

Contrasenso

Vejam o contrassenso. Na realidade, o CONSECANA-SP é mantido por, além da UNICA, que defende os interesses dos industriais, pela Orplana, através das associações que defendem os interesses dos fornecedores de cana. Logo, seria interessante que cada um pensasse: qual o meu papel no desenvolvimento e na manutenção do Sistema CONSECANA-SP? Qual a minha contribuição para que a atualização aconteça de maneira eficiente e ele possa me representar frente aos grupos de discussão? Como posso contribuir para que ele seja reformulado de maneira que represente a nova realidade do setor, remunerando melhor o fornecedor de cana frente à nova realidade.

Outro fator importante é saber da existência de negociações extra-sistema, cada vez mais comuns em nossa região, que acabam favorecendo grandes produtores e desfavorecendo vários outros, pequenos. Isso porque alguns grandes fecham seus contratos baseados em toneladas com qualidade de ATR pré-fixado, o que não incentiva a qualidade geral da matéria-prima, premissa principal do CONSECANA-SP, pelo qual todos ganham por entregar qualidade. Diante dessas negociações, esses produtores acabam não se importando com a qualidade e se preocupam em entregar peso, resultando em uma qualidade média geral do ATR US, o que prejudica, diretamente, a outra grande maioria que estabeleceu suas negociações com base no CONSECANA-SP.

Culturas como essa enfraquecem cada vez mais a classe e, digo ainda, o Sistema CONSECANA-SP, que foi desenvolvido para garantir a relação justa na negociação da matéria-prima em função da qualidade entregue.

O homem é um ser social e possui uma individualidade. Não é perfeito e, portanto, sob diversos aspectos, limitado. Precisa viver consigo mesmo e com os outros, porém, para contemplar as vantagens coletivas, é importante assumir responsabilidades coletivas. Justamente por diferirem em tantos aspectos, podem gerar atrito de valores.  

A realidade exige um olhar diferente para questões apontadas. Existem situações que podem ser ignoradas, passíveis de serem aceitas, em prol da sociedade, do bem comum. Gostaríamos que esse limite fosse mais elástico e, de certo modo, o é. Mas num tempo de crise em que você não se sente representado, contemplado ou atendido em suas necessidades, é importante ser realista e ver qual a sua responsabilidade nisso. O cenário atual diante de suas necessidades não permite negativismo. Precisamos de ações pontuais na economia, e puxar a rédea de uma carruagem desenfreada não é fácil. Nossa geração de fornecedores independentes de cana-de-açúcar precisa, porém, REVOGAR a lei de Gérson e que todos assumam juntos a responsabilidade para uma mudança que leve em conta não os interesses individuais, mais de uma coletividade.

Será que fazemos parte de uma classe de egoístas, corruptos e sacanas que pensam só em si e só querem saber de levar vantagem? Longe de defender algum comportamento antiético, seria bom refletirmos: se ele existe, possivelmente é reflexo da nossa realidade, em que o impacto tão iminente traz a ilusão momentânea de vantagem, mas com reflexos de uma classe fadada ao insucesso.

Neste cenário, o cooperativismo e o associativismo têm sido, cada vez mais, cruciais no papel de unir forças para enfrentar os tempos difíceis. Faça parte dessa mudança você também. Procure sua associação, valorize sua história, sua classe e lute por ela, pois, só assim, você poderá ser representado de forma eficaz e eficiente.

Por Almir Aparecido Torcato

Gestor de Relacionamento, Recursos e Projetos da Canaoeste

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